quinta-feira, 26 de maio de 2011

Sobre meninos e meninas


“Seu viado!” Caro leitor, deixe-me primeiro estabelecer um axioma neste parágrafo introdutório. A expressão entre parênteses constitui um xingamento na sociedade brasileira. Mas porque chamar alguém de “viado” (sendo fiel à pronúncia ) é um xingamento no Brasil? Pior, porque nós nos ofendemos com isso? Ninguém gosta de ser chamado de viado. Raízes históricas aqui não me interessam. O que interessa é dizer que o tal xingamento é xingamento porque ser homossexual na nossa sociedade ainda constitui anomalia, conduta fora da curva. E aí que digo: tal tratativa só será corrigida quando o homossexualismo for visto com naturalidade; não como prática obscura, das perversões noturnas, da sexualidade exacerbada nas esquinas mal cheirosas e mal iluminadas de nossas sacrossantas cidades. O homossexualismo só será visto como imanente à natureza humana ( a real e não a ideal dos credos religiosos) quando aprendermos que ela pode comportar um romance, uma paquera, uma união estável, um casamento, amor e ternura. Tal como acontece no exercício da heterossexualidade. Mas, caro leitor, também afirmo que uma ideia dessa assusta porque não é possível simplesmente ignorar o conformamento anti homossexual que recebemos de todos os lados desde que nascemos. A heterossexualidade como standard está incrustada na nossa consciência e é necessário um trabalho árduo para vencer o preconceito que brota dos nossos intestinos (Platão dizia que os sentimentos menos nobres vinham dessa região anatômica) quando o assunto é o homossexualismo. Eis, portanto, o axioma: só venceremos tal iníqua situação quando tornarmos a diferença um algo natural.

Tornar natural, hodierna, tranquila, ao meu ver, é o que justamente os vídeos componentes do kit anti homofobia (Torpedo, Encontrando Bianca e Probabilidade) do governo federal tentam fazer. É claro que assustam a primeira vista. Porque mostram com naturalidade o que nós fazemos questão de varrer para debaixo do tapete, de ignorar existência para nos sintamos bem, bons religiosos e destinados ao paraíso celestial. Como já disse, a conformação preconceituosa que recebemos da sociedade faz difícil este exercício de aceitação das diferenças. Eles são destinados para adolescentes, cursantes do ensino médio. Um deles mostra um menino que se descobre bissexual. Ora, bissexualismo não comporta lugar na sociedade? Não é fato que, por trás da hipocrisia que às claras só admite o que deus preceitua, o bissexualismo faz também parte da natureza humana, assim como a coloração da pele, as diversas alturas, as várias línguas? E por que devem elas ser banidas? Por causa da seletividade religiosa que acha muito mais fácil pegar um versículo anacrônico do velho testamento e impô-lo, deixando o mandamento mais radical e desafiador que Cristo enunciou para quando for conveniente? Os outros vídeos tratam de lesbianismo e transsexualidade. Faço valer para estes casos o mesmo comentário que fiz sobre o bissexualismo.

Digo para você, leitor, que são vídeos ternos, tranquilos e diretos. É de se esperar, portanto, a reação intestinal maciça da maioria das pessoas. Mas curiosas mesmo são as reações que pude encontrar no blog do Paulo Henrique Amorim. PH é um baluarte do combate ao mau jornalismo, ao corporativismo jornalístico vergonhoso, à atividade político-partidária vergonhosa empreendida por uma mídia elitista e corrupta. Seu blog abrigou importante centro de combate ao candidato Serra. Logo é um recinto da “esquerda”, se é que tal nomenclatura ainda faz sentido. Enfim, é o reduto da oposição ao machismo, ao elitismo, à homofobia. É o reduto da defesa pela emancipação das minorias, dos oprimidos, dos pobres. Interessante foi o modo como PH capitaneou a luta contra o candidato Serra e a maneira como denunciou a participação em atividades religiosas nas quais garantia o veto a propostas de cunho anti-homofobia. E seus leitores-comentadores apoiavam incondicionalmente. Faço este parênteses porque comentar justamente o comportamento de boa parte desse pessoal: totalmente reacionário em relação aos vídeos do MEC. Como entender isso? Os vídeos, como eu disse, vão muito além pois a pior agressão que a mentalidade espúria do preconceito pode sofrer é a verdade de que a diferença de cunho sexual pode ser tão ou mais amorosa que a velha e batida heterossexualidade. Diante de tal argumento apresentado nos vídeos, esse pessoal, outrora defensores da vanguarda contra o preconceito e oportunismo tucano, vestiu a carapuça do reacionarismo. Tudo porque, mesmo defendendo Dilma, o direitos dos pobres, nordestinos, negros , índios e adjacências, parece-me mesmo que para esse pessoal, os gays tem direitos desde que o gay não seja seu próprio filho, não seja da família. O gay tem direito de ser gay desde que não apareça,desde que não se manifeste. O pessoal que condenou o candidato Serra por seu moralismo de quinta categoria, diante da tentativa salutar de tratar o assunto com naturalidade, expõe o preconceito dissimulado pela aparência da vanguarda emancipatória, deixando escapar os sentimentos rasteiros provenientes do duodeno quando se pensa na possibilidade de se pensar em ter um filho em uma das situações descritas no vídeo. E contando que esses vídeos não constituem apologia porque se assim fosse, a apologia maciça que se faz hodiernamente a heterossexualidade seria capaz de demolir a homossexualidade. Não esquecendo também que as diversas opções sexuais existem desde sempre, para além dos ensinamentos obtusos e anacrônicos das religiões hipócritas.

Pode se objetar que o público não seria exatamente o mesmo que se manifestou no blog contra o candidato Serra e suas ideias, e de fato não deve ser mesmo. Pelo menos não exatamente as mesmas pessoas. Mas o público que acompanha continua o mesmo. E pela amostragem, mostrando um grande número de pessoas desaprovando os vídeos, não posso deixar de acreditar que, pelo menos, se tratam de pessoas componentes do público de PH e partidários das ideias de igualdade social promovidas pelo governo Lula/Dilma.

Trocando em miúdos, penso que este medo da tal apologia dissimula o horror destes pretensos defensores de direitos de que eles tenham a ter um filho gay. Repito: reconhecem direitos porque hoje, para quem tem o mínimo de brios, é feio fazer diferente. Mas fazem isso desde que o gay não aconteça dentro de sua casa, dentro de sua família.

É possível, ainda, estender esta crítica às demais pessoas que se manifestam nos espaços de comentários abaixo das notícias, como ocorre no UOL. A franca maioria aparece dizendo respeitar os homossexuais para em seguida usar argumentos sob os quais os vídeos seriam não só apologias, mas talvez uma imposição de foro íntimo (???). Meus caros, até a presidente da república, que muito respeito,  escorrega feio quando afirma que tais vídeos seriam "propaganda de opção sexual". Pois ora, se passarmos Romeu e Julieta para os adolescentes conhecerem Shakespeare, estaremos diante de um monumento à humanidade, uma joia da literatura e do gênero humano como um todo. Se , no entanto, der na telha do educador exibir o Segredo de Brokeback Mountain,  outra joia artística de sensibilidade ímpar, vejam bem, com a cena de sexo cortada (para acalmar os de alma sensível)! Só com as cenas de demonstração de afeto dos cowboys! Aqui , em vez de um amor bonito, teríamos, na opinião douta da presidenta, dos falsos apoiadores da diversidade e hipócritas de todas as medidas, propaganda de opção sexual! Um perigo para nossos pimpolhos, que correrão o risco de se tornarem seres pervertidos, heréticos, um horror. Temos propagandas ternas que mostram o amor heterossexual, e nada é dito sobre se fazer propaganda de opção sexual de modo a soçobrar a natureza homossexual, desrespeitando-a. Mas se temos vídeos de ternura homossexual, aí fazemos apologia, propaganda de opção sexual, tentativa de induzimento, destruímos a família, banhamo-nos no enxofre, suprema iniquidade!

É também curioso, voltando ao público de PH, que essas mesmas pessoas engrossam o coro do jornalista contra a imprensa brasileira de cunho golpista. E é curioso porque a Rede Globo, estandarte desta turma reacionária, tendo o papel que tem de conformar pautas sociais, de decidir o que se discute e o que se ignora na sociedade, não faz o mínimo esforço para acabarmos com esse preconceito estúpido. Quando o comentarista do site do PH fala algo como “os gays devem ter direitos mas isso não significa que ser gay é bom ou normal” está sendo mais um parceiro de estultice daquela mídia que este mesmo comentarista ama odiar.

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Outras observações:

Muito curioso também é o fato de que esse mesmo tipo de comentarista do site de PH entronizou uma espécie de cegueira para com o governo da situação. E tanto é assim que quando este mesmo PH critica o governo que ele próprio ajudou a eleger, realizando salutar tarefa democrática e republicana, chovem comentários dizendo que o saudoso jornalista “se vendeu”, que trabalha para o tal PIG. Meu caro leitor, parece ser fato que Palocci enriqueceu absurdamente tanto enquanto deputado federal quanto nos meses que se passaram da eleição de Dilma até sua posse na casa civil. Seria de se esperar que, pelo espírito republicano, este senhor viesse a lume explicar o que se passa com tanto dinheiro. A coisa engraçada foi o governo ter recuado atendendo exigência da bancada evangélica: ou cancela a distribuição desses vídeos heréticos ou levamos a diante uma investigação mais apurada contra o eminente ministro. Eis que então o governo resolve capitular. E isto é engraçado porque, nos comentários do site do PH, além das pessoas acusarem o PH de ter se vendido, alguns mencionarem que o Lula não erra (seria Lula ou um deus?), que Dilma também sabe o que faz, também usaram o episódio Palocci como se este fosse um perfeito bode expiatório para justificar a capitulação em relação aos vídeos anti homofobia. Se a presidenta sabe o que faz, se Lula também está livre de erros, manter o Palocci é justo e tal negociação com a renitente bancada evangélica teria vindo muito bem a calhar porque os vídeos eram, nas palavras de alguns também, “equivocados”.

Esta embricamento, feliz coincidência, da condição imposta pelos evangélicos para aliviar pro eminente ministro, é difícil de se analisar em sua inteireza e nem objetivo isto aqui. Mas que teve quem usasse de tal expediente para resolver dois problemas numa tacada só, teve! Como é possível se depreender dos comentários no site de PH.

Se o embricamento é complicado de se esmiuçar, claro como o dia numa manhã fria de sexta em Curitiba é o fato de que o princípio republicano que nos rege torna necessário que os administradores públicos prestem conta. Nem tudo que é legal é moral. E Palocci já foi defenestrado pela acusação de ter quebrado um sigilo de conta bancário de simplório caseiro. Fato é que tamanha quantidade de dinheiro brotando do nada na conta de um eminente ministro da casa civil não é algo que o brio republicano nos permita ignorar. Fato também é que quando este senhor se recusa a explicar, está cuspindo na cara de quem elegeu a presidente desta república federativa.

Quero lembrar aos senhores leitores que o mensalão, como diz propriamente Mino Carta, carece de provas mas que o financiamento ilegal de campanha se apresenta como calcanhar de aquiles da eleição de Lula em 2002. As investigações são muito claras em afirmar a existência desse financiamento ilegal que pode constituir crime de responsabilidade para o mandatário que dele se serviu para chegar ao posto mais alto do poder executivo brasileiro. Se já tivemos um Dantas, um Valerioduto e uma Erenice, não precisamos de novo de um pesadelo imerso em segredos e maquinações que são, do ponto de vista republicano, inadmissíveis. Concordo com o jornalista PH quando este diz que tanto dinheiro sem explicação levanta suspeitas até mesmo em relação ao financiamento de campanha de Dilma. Assim nós vemos que república mesmo, só no papel.

Termino dizendo que assim como o homossexualismo acaba sendo desaprovado inclusive por pessoas que se dizem defensores dos direitos gays (não são todos que são hipócritas assim, por óbvio), os bons valores republicanos são nublados por uma seita pró governo que não aceita críticas e parece confiar cegamente no que seus mandatários fazem. Algo que lembra aquela história que dizia mais ou menos assim: “não pense meu filho, deixe que o Führer pense por você”.

Remates sobre tudo isso que nos inunda olhos e orelhas parecem-me por demais complexos no momento, mas sei dizer que os valores pregados, em um caso e no outro, valem até serem barrados pela conveniência, pela tranquilidade do status quo, pela o exercício acrítico da cidadania política. E ao final, a alteridade e a república continuam atrás no placar; perdendo para outros elementos de obscura sensatez.

IK

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