terça-feira, 5 de junho de 2012

Desespero


Noite chuvosa. Sentada sob o cobertor, assistindo um programa qualquer de tv, esperando o dia chegar, a hora passar, aquele velho segundo que insiste em não parar. Prédio alto. Das figuras que trespassam a fina tela da tv nada se diz. Nada falam. Nada significam. Olha então para seu lado direito. Vê o trovejar, as nuvens negras na noite. Esta empalidecendo sob a neblina. Então vem a água. Pingos e mais pingos a espancar as janelas. É daquelas noites terríveis. A noite da solidão. A menina abaixa a cabeça, olha o balde de pipoca vazio, o tapete opaco. Respira fundo; a menina no vazio.

Surgem então, por detrás das janelas, os filhos do homem. Com os olhos abertos, mãos espalmadas. Pés descalços. O fogo emana de suas entranhas. A menina se assusta, treme pode dentro. Que eram aquelas criaturas fantásticas? Que querem eles? A dor que há de nos consumir todos no dia do juízo? Pensa a garota, entre a aflição e o terror, que será tudo aquilo? Qual o significado do chão que caiu, daquilo que de há muito acontece sob o sol?

Então escutou um gemido. Um pequeno animal gritando lá em baixo. E subiu pela sua garganta uma necessidade de sofrer e de carregar uma dor que o mundo nunca esteve pronto para sentir. Debaixo dos seus olhos, quando carregou seus dedos em direção às pálpebras, sentiu letras caírem pelo rosto. Letras essas, que se bem lembrava, eram de um romance a muito tempo esquecido; uma história de amor, de separação, de dor e de graça. Uma história que encantava os transeuntes das ruas cinzentas que passavam por um prostíbulo qualquer. Sentiam, pois, o sabor daquilo que ansiavam mas não podia ter.
 
Levantou os pés, uma vez que estava sentada no sofá, para se dirigir à porta. Saiu em direção às escadas. Lembrou que nesta parte da vida a luz não existia; era simplesmente uma lenda contada certa feita por um sábio a ministrar pílulas de clarividência embotadas pelo vento frio de um final de tarde no litoral. Enquanto descia todos aqueles degraus, aquele concreto frio queimando seus pés, pensava na casa que deixava para trás, numa vida que estava por vir, em todos os mistérios do desconhecido. Por um momento teve dúvidas e as dúvidas tomaram conta do seu ser.

Chegando lá em baixo, pela portaria enevoada, lançou-se através da rua sem nem ao menos olhar para os lados. Quando pisou no gramado, sentiu alívio, ajoelhou-se, chorou. A chuva molhava seus cabelos e os pingos castigavam as suas costas. Suas mãos tateavam a escuridão, pelo meio da grama enlameada, procurando da onde vinha aquele som fugidio. Encontrou então aquela esplêndida criatura, extremamente machucada e pequenina, de musculatura tensa, expressão inocente, cujos olhos negros eram as únicas coisas que brilhavam naquela escuridão toda. Olhos que não piscavam , que olhavam fixos para a menina enquanto esta jazia prostrada a encarar o pequeno cão, ambos em cima da lama, circundados por negras árvores em uma selva de pedra.

Então estas duas criaturas se aproximaram e a menina abraçou a fonte de todos os gritos, de todos os os sussurros, das lamentações todas. O vento batia em ambos os corpos, a água diluviana ameaçava os afogar em seus próprios pensamentos. Um coração sentia o outro, batiam em compasso, aqueciam-se na ausência do sol. Ao agasalhar com seu próprio corpo aquele cão coberto de feridas, faminto, quase a se decompor no meio de tanta água e terra, compreendeu que abraçava a si mesma. Aqueles ganidos nada mais eram que sua própria voz a berrar por uma saída daquele labirinto em que se metera. E não havia trovões, água, fogo que lavassem sua alma e que a tirassem dali para aquilo que dizem ser o mundo de luz. 

Abraçada àquela criatura, que assumia agora contornos pavorosos, emitiu um grito surdo, um estranho som que se fez ouvir em todos os corações do mundo mas que não chegou aos próprios ouvidos de quem emitia. O cão então se desfez em seus braços como o pó que retorna a terra, esfarelando-se, misturando-se com a lama, fazendo o chão. A menina arqueou, ofegante, no meio do mesmo cenário chuvoso, sem pensar, apenas sentindo. Fazendo nada, somente existindo. Tinha certeza que dali não sairia a não ser através de um grito igual ou mais forte que o seu, que arrancasse seus coração daquele chão pegajoso; teria de ser arrancada pela raiz que seu corpo criara por dentre as entranhas da dúvida. E chorou delírios dos mais incríveis, com as mãos levantadas para um céu que a ignorava; céu que vomitava água torrencialmente sobre um belo rosto portador de olhos castanhos; um castanho que pela força do seu brilho forçava a humanidade a achar resposta para a razão do ser... Havia de gritar, mas quem poderia gritar desse modo? 

Tocou os restos de seu pequeno amigo. Se fora, com certeza. Perguntou-se então onde ele teria ido? Inclinou o peito em direção à terra, encostou a cabeça no chão, escutou a chuva vindo de cima. Entretanto, para sua surpresa, ouviu também as trombetas dos filhos do homem. Levantou o rosto e viu que eles cavalgavam em sua direção com os corpos envoltos por ígneas labaredas fantásticas, desenhando espirais de uma beleza terrível. Era o prenúncio do que a humanidade haveria de sentir sob o sol.  Essa figuras míticas anunciavam as coisas a serem feitas, o destino a ser cumprido, a promessa a ser selada. De súbito, a menina sentiu seu coração parar. Na fração de um segundo, o brilho flamejante daquelas potências alargou suas pupilas e jorrou o mistério dentro de sua mente. A chuva parara, a noite havia se acalmado. E ali a menina adormeceu, sonhando com as promessas de uma terra distante e com o que haviam lhe contado os sons das trombetas que anunciavam o verdadeiro tempo do homem sob o sol. Um sol que ela sempre esperou, que sempre a iluminou por dentro. Um sol que era uma dádiva por vir.

Todavia, antes que o ente luminoso surgisse, acordou num sobressalto. O cão dormia ao seu lado. Sentou-se com dignidade, mas sentiu o cansaço. Acariciou a fronte do cão, sentiu seu calor. Imaginou que os filhos do homem, ungidos pelo fogo, queriam levar a sua dor embora. Entretanto ela não permitiu e nem permitira jamais. A dor como tesouro da existência. Preferiu guardar seu sofrimento dentro de um coração que nunca conseguiu se fazer ouvir: o seu próprio. Isso porque os corações deste mundo estão entorpecidos pelo próprio  silêncio.

Amanhecia. Possuída pela dignidade dos mártires e tomada pela paixão dos que morrem de amor,  a menina ergueu seu corpo pálido diante da luz que nascia e, em uma amarga reverência à existência que se condena ao silêncio, resolveu legar ao mundo nada mais que o mistério de uma alma humana que andou sob o sol. Afinal, arrancou o próprio coração e enterrou naquele chão em que ela e seu companheiro haviam entregue suas almas; um chão alimentado  pelo corpo de um cão que jamais existira, por uma chuva cruel e por algumas lágrimas de solidão.



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